Este mundo possível

Pensamento e ação aqui e agora.

quarta-feira, maio 02, 2007

CHEIRO DE RALO, O FILME

É a melhor representação que vi até hoje da universalização do cinismo e da banalização da crueldade.

O cheiro de ralo está na atmosfera desde que o homem se inventou. Mas agora não é evitado nem escamoteado. Deixa de incomodar, perturbar. Passa a ser natural. O protagonista, Lourenço, descobre e admite que gosta do cheiro, ama o cheiro. É o seu vício. Não vive sem o cheiro.

Algumas pessoas ficam perturbadas com o filme, o que considero um dos efeitos máximos que a obra de arte pode produzir.

Arte da boa, o filme se oferece a interpretações e explicações múltiplas. O cheiro de ralo provoca o discurso. Obriga a pensar e leva a enunciados diversos. É uma denúncia da coisificação pós-moderna. Uma crônica sobre os limites da dignidade humana. Uma alegoria da podridão que grassa no Brasil. E também, claro, uma representação da universalização do cinismo e da banalização da crueldade.

É tudo isso e muito mais. E tudo isso é a mesma coisa. É o cheiro. Tudo é coisa: pessoas, desejos, sentimentos, objetos. Tudo está à venda. Ao protagonista não interessa o que não pode ser comprado. Tudo tem de ser comprado para ter valor. O mais cruel é que Lourenço prova a sua visão. Tudo e todos têm preço. Elementar: é uma tese autodemonstrada para quem tem nas mãos a faca e o queijo.

O cheiro está à nossa volta e dentro de nós. Quem sabe também quero o cheiro? Gostar do cheiro é perder a capacidade de resistir. É entregar os pontos. Aderir.
Mas a resistência escapa e desafia. A resistência vive no cheiro. É a perturbação que a obra provoca. O filme, ele próprio, é resistência.
Heitor Dhalia, Lourenço Mutarelli, Selton Mello, Marçal Aquino e toda a equipe de criação e produção tiveram um daqueles raros e felizes encontros que resultam numa arte inquietante, de arrepiar.

domingo, abril 29, 2007

Cheiro de ralo no reino

Não nos deixam esquecer que há algo de podre no reino. Vale ler este artigo de Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente. Um primor de formulação e de estilo. Trata da criação, no governo federal, da Secretaria Especial de Assuntos de Longo Prazo, apelidada de Sealopra. E, sobretudo, da nomeação de Mangabeira Unger para a nova pasta ministerial do Governo Lula. O artigo foi publicado no Globo de 27/4.

domingo, abril 08, 2007

ARMADILHA DO CRESCIMENTO

Ruína social e ambiental

É bom quando a gente ouve ou lê alguma coisa que reforça nossas poucas certezas e as muitas desconfianças e dúvidas, principalmente quando elas nos fazem sentir às vezes como se estivéssemos remando contra uma tsunami de crenças consolidadas.

Foi com este sentimento que li a pequena entrevista do economista Hugo Penteado, publicada no Globo deste sábado (7/4/2007). Ele pega pesado na crítica à obsessão global pelo crescimento: “Há muita ênfase no crescimento econômico como solução, embora ele sempre venha acompanhado de ruína social e ambiental. (...) Vive-se na armadilha do ‘quanto mais cresço tenho de crescer’. Isso acontece porque, sem crescimento, os sistemas corporativos e tributários irão à falência.”

Penteado é economista chefe do ABN Amro Asset Management. Registre-se que as gestoras de ativos (asset management) são hoje o coração dos mercados globais (se é que se poder dizer que mercado tem coração). Sua entrevista revela – ao menos para mim – a possibilidade promissora de haver espaço para a crítica, no centro do capitalismo pós-moderno, aos ‘consensos econômicos globais’, ‘convergências da doutrina econômica’ e toda a pregação que quer eternizar a ditadura do ‘pensamento único’ sobre as decisões econômicas dos indivíduos e sociedades.

Revisão de mitos da teoria econômica

A entrevista foi publicada na edição especial sobre meio ambiente da coluna ‘Negócios & Cia’, da jornalista Flávia Oliveira, o que revela outra possibilidade igualmente promissora: a preocupação com o colapso ambiental em curso pode propiciar o questionamento mais contundente e para um público mais amplo daquilo que Penteado chama de “mitos da teoria econômica”.

Ele preconiza a revisão destes mitos e também pega pesado: “(...) há um custo ecológico que jamais foi incluído nos preços das matérias primas. (...) A razão pela qual o sistema de preços e o livre funcionamento dos mercados não são capazes de precificar o custo ecológico e deter a devastação está em nossos valores. A ideologia de negação do custo ecológico é validada pelas teorias econômicas que regem as políticas atuais. Elas trabalham com a premissa de que o sistema econômico é neutro para o meio ambiente e que o meio ambiente é inesgotável”.

Penteado alerta para ameaças relacionadas aos projetos de produção de biocombustíveis e à crescente demanda por água. “É por essa porta que vamos viver uma crise de cunho econômico, político e ambiental. Será uma crise emblemática de nossos erros teóricos”. Ele também assinada o risco de colapso ambiental na hipótese ascensão material das quatro bilhões de pessoas (dois terços da humanidade) aos padrões de consumo dos demais. “A marginalização econômica, embora antiética, indesejável e arriscada, tem efeito positivo no meio ambiente”.

As considerações de Penteado não são originais, mas entendo que merecem atenção, seja pela posição do autor seja por terem sido veiculadas para um público que vem sendo bombardeado há anos com a idéia de que o mercado é a referência absoluta de tudo, é onipotente e vai, portanto, nos levar à salvação, sempre. Ora, será que o anátema da crítica ao mercado começa se ser flexibilizado lá no núcleo duro do sistema, onde se decide onde se põe e de onde se tira o dinheiro?

Repensar o crescimento e os padrões de consumo

Mas, se os ecos da entrevista de Penteado soam promissores por nos trazerem a esperança da crítica, também são tristemente perturbadores por conterem a desesperança do impasse, da falta de saída. Cabe, portanto, problematizar pelo menos duas de suas questões:

1) O crescimento econômico é necessariamente causa de ruína social e ambiental? Será mesmo que é impossível crescer sem destruir o meio ambiente e sem alargar o abismo entre ricos e pobres? Ou melhor, é possível preservar o meio ambiente e aproximar os padrões de vida de pobres e ricos sem crescer a economia?

2) A única forma de elevar o padrão de vida dos pobres é universalizar os padrões de consumo (e talvez de desperdício) dos ricos? É preciso repensar o padrão de consumo de todos, inclusive dos ricos? É possível transferir renda, conhecimento e poder aos mais pobres? Isso significa necessariamente perda ou ameaça aos mais ricos?

Creio que vale apostar na capacidade acumulada pela humanidade de produzir conhecimento, criar soluções e superar limites. Estamos tão acostumados com a ganância e o poder destrutivo do homem que nos esquecemos que a nossa potência criativa também promove comunhão e constrói.

domingo, setembro 03, 2006

Faz que não vê

Tenho a alegria de informar que o romance Faz que não vê chega às livrarias esta semana com o selo da Editora Garamond. É o meu primeiro livro publicado. Trata-se de um thriller político que tem como pano de fundo o universo sedutor do poder e a busca, a qualquer preço, da satisfação de desejos, necessidades e ambições.

O livro conta a história de um ex-guerrilheiro que se converte em yuppie nos anos 90 e se envolve numa trama em que se misturam negócios, política e crime. Construído de cenas interdependentes, o romance é ambientado na atmosfera de grandes empresas, gabinetes de autoridades, casas luxuosas e esconderijos de criminosos, conduzindo o leitor aos meandros do submundo que todos nós conhecemos, mas, muitas vezes, tentamos não ver e esquecer.

Comecei a escrever este livro em 2001 e terminei em 2005. Uma das motivações e pretensões do romance era refletir sobre a tensão ética e descrever os bastidores do comportamento de uma parte da geração, na qual me incluo, que sonhou e desejou muito, se apaixonou pelo sonho e não mediu sacrifícios pelo desejo, e parece estar vivendo a frustração de entregar muito pouco: algumas mudanças talvez para melhor e outras muitas para pior.

Como construção literária, o projeto era contar uma história interessante, com bastante ritmo, numa atmosfera de niilismo e desencanto político. Escolhi o tempo da era Collor e uma trama povoada de empresários, políticos, sindicalistas e criminosos envolvendo interesses na decadente Zona Portuária do Rio de Janeiro.

A idéia e o início do livro antecederam, portanto, a eleição de Lula em 2002. A trama da história e o drama dos personagens também nasceram nesta ocasião. Nunca duvidei da lição cotidiana de que a realidade é mais forte que a ficção. E fui comprovando isso dia a dia, na medida em que ia escrevendo e acompanhava cada capítulo dos acontecimentos que produziram a presente crise política no país, tendo como protagonistas alguns dos mais destacados líderes e ídolos da geração política que resistiu à ditadura e acreditou na revolução.

Ao mesmo tempo, eu verificava - às vezes com espanto - a correspondência entre as diferentes erupções da tensão ética dos personagens do romance e o comportamento dos atores da nossa crise política. E isso reforçava aquela motivação original do livro.

Foi com sentimento de orgulho um tanto constrangido que, há alguns meses, recebi do amigo e mestre Antonio Torres o texto da orelha do livro, destacando que o enredo do romance funcionou como trama e também como representação de um sistema que se agiganta como poder paralelo e ameaça a todos enovelar em sua teia, atravessando diferentes eras e governos. Assinalo, de minha parte, que não quis fazer no romance qualquer julgamento moral nem aposta política ou existencial, a não ser na crença de que não há saída da realidade para a utopia e, portanto, que não há como fugir de nós mesmos nem do aqui e agora.

domingo, agosto 27, 2006

Zuzu Angel e a representação da esquerda armada

Zuzu Angel, o filme de Sérgio Resende, conta com emoção a história da estilista que teve o filho Stuart assassinado pela ditadura militar. Desafina, porém, no tom de cenas e falas dos jovens guerrilheiros dos Anos 60 e 70 e, também, dos personagens da repressão militar. Estes assumem com naturalidade excessiva o papel de vilões. Dos que combateram a ditadura, fica o retrato caricato de jovens cheios de boas intenções, mas ingênuos e irresponsáveis.

Creio que é comum perceber esse mesmo retrato dos jovens rebeldes em outras obras que procuram interpretar ou representar os acontecimentos da luta armada no Brasil.

Comentando, dez anos atrás, a safra de livros sobre a luta armada no Brasil, o historiador Daniel Aarão Reis Filho, publicou o artigo Este imprevisível passado, que resume quatro das interpretações sobre estes movimentos:

“Primeira: meninos alucinados, ou a conciliação de uma sociedade cordial, cansada das lutas que não travou. Segunda: resistentes heróicos, ou a denúncia de uma ditadura com a qual a sociedade não se comprometeu. Terceira: revolucionários que se apresentam como contra-elite, ou a desconfiança de uma vanguarda iluminada no contexto de uma sociedade que não se revoltou contra a sua ditadura. E, finalmente, uma versão apenas tateante, que refere o processo à construção de um ethos, um conjunto de valores, sem a compreensão dos quais nunca será possível compreender estes estranhos anos, quando ainda era possível amar a revolução”.

O artigo conclui que é possível combinar uma ou outra interpretação, mas que não dá para juntar todas no mesmo balaio, sob o risco de produzir incongruências. Aarão Reis observa que as interpretações da história refletem aspirações e interesses distintos. Quando escolhe uma versão do passado, a pessoa está “se posicionando no presente e propondo uma opção de futuro”.

Entendo que, para além de aspirações e interesses, é mesmo difícil compreender – e representar – hoje o que levou aquelas poucas pessoas, na maioria adolescentes, a desafiar o regime militar e acreditar na revolução.

É difícil entender sua maneira de pensar e suas ações. Seria preciso articular com mais rigor e sensibilidade o ambiente político e as histórias pessoais e, sobretudo, considerar o que representava para aqueles jovens viver sob ditadura. Todos estavam submetidos, como ainda estamos, a um sistema injusto e retrógrado. A diferença é que as vozes dos insatisfeitos estavam caladas, toda opinião e ação política não colaboracionista era reprimida com violência. Para aquele tipo de gente não havia escolha. Não iriam concordar nem se omitir. Para eles, a ditadura forçava a opção pelas armas.

Como compreender isso fora da experiência da ditadura? Como representar? Ainda mais se hoje parece claro que, apesar das boas intenções dos que lutaram, nem tudo o que se pretendia corresponderia, se acontecesse, aos seus desejos e sonhos.

sábado, agosto 19, 2006

A esquerda enterrada viva

A diferença entre esquerda e direita ainda faz sentido?

Um dos debates da IV FLIP - Festa Literária Internacional de Parati, reuniu o inglês Christopher Hitchens e Fernando Gabeira, com moderação do jornalista Merval Pereira.

Ao fazer as apresentações, Merval observou que ambos tiveram posições radicais de esquerda e hoje atuam no campo da democracia, embora pensem de forma diferente. Lembrou, a propósito, o entendimento amplamente aceito de que a divisão esquerda-direita teria sido superada no presente.

A convergência esquerda-direita é uma idéia bastante generalizada. Confesso que andei seduzido por ela, por conta do fracasso das utopias, da queda do muro, do vale-tudo da luta pelo poder - igualando as correntes políticas - e do abatimento da crítica frente ao absolutismo do mercado.

Porém, faço parte do povo que tem obrigação de ter aprendido sobre o perigo das formas de pensar com ambição de totalidade. Creio que vale problematizar a idéia de que a divisão esquerda-direita é coisa do passado.

Entendo que não há como concordar com a inexistência da divisão esquerda-direita sem admitir que as utopias e projetos da esquerda fracassaram e, portanto, que a direita triunfou.

Venceu - ou está vencendo - o projeto da direita. Tornou-se o sistema dominante, o poder global.

Não há, portanto, convergência, mas hegemonia. Assim, a indistinção entre esquerda e direita nega à esquerda a possibilidade de ser.

Morreu mesmo a esquerda ou se quer enterrá-la viva?

O debate entre Hitchens e Gabeira demonstrou não só diferença como também profunda divergência entre uma direita que pretende completar a dominação global e uma esquerda que se renova.

Hitchens justifica o estado de guerra global, em nome do combate ao fundamentalismo islâmico, e força a confusão entre terrorismo e resistência. Gabeira vê no projeto de impor a democracia em todo mundo, a ferro e fogo, uma utopia tão perigosa como qualquer outra.

Aliás, fundamentalismo de mercado e terrorismo religioso são filhos contemporâneos da mesma chocadeira.

A falta da esquerda não serve à democracia. É bom que a esquerda se renove e se fortaleça, para que a ambição de totalidade, de pensamento único, não insista em se converter em totalitarismo universal e absoluto. E para que possa ter fim o estado de guerra global.

Talvez as noções de esquerda e direita estejam mesmo enfraquecidas e a pós-modernidade peça outras categorias para que se compreenda as mutações em curso na política, na economia e na subjetividade. Talvez seja melhor falar em resistência e poder, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Toni Negri e outros pensadores.

Mas seria tolice deixar esvair a força de palavras e noções que não se esgotaram. A esquerda respira e pode ser o limite do controle globalizante e, também, dos fundamentalismos religiosos. Isso talvez explique a pressa em sepultá-la antes do tempo.

sexta-feira, agosto 04, 2006

É bom perguntar a quem interessa o voto nulo

Bom mesmo é se perguntar sobre tudo e tentar achar respostas no balaio da dúvida e da perplexidade. Com um pouco de boa vontade, dá para desanuviar a paisagem e perceber escolhas possíveis.

A eleição se aproxima e cresce a onda do ninguém presta e é tudo o mesma coisa. Todo candidato é safado. Então, vamos anular o voto! Quem ganha com isso não é o eleitor, o povo, a sociedade. Quem ganha é a banda podre da política, os que se elegem às custas da miséria e da ignorância, os corruptos. Estes têm votos garantidos nos currais pelo tráfico de influência e favores, pelo fisiologismo e pelo messianismo.

A eleição é uma ótima ocasião para exercitar o compromisso com este mundo possível. Não existe outro mundo. Nada vai melhorar se não fizermos hoje a melhor escolha ao nosso alcance.

Um passo para isso pode ser uma visita ao site da Transparência Brasil para conhecer o Projeto Excelências. Trata-se de um cadastro de todos os candidatos que buscam a reeleição à Câmara Federal e mais ex-ministros, ex-governadores etc que também são candidatos a deputados federais. Inclui dados pessoais, desempenho legislativo, processos judiciais e menções publicadas na imprensa se o candidato está ligado a casos de corrupção.

Outro passo é acompanhar o debate e apoiar a tese de que a Constituição Federal, em seu parágrafo 10, permite a impugnação da posse de políticos eleitos que tenham contra si provas de abuso do poder econômico, fraude ou corrupção.

Toda grande marcha começa como o primeiro passo. Aqui temos dois que podem nos levar a ter um parlamento legítimo e respeitado pela população.